Fico
lembrando cada vez mais da minha infância. Talvez isso esteja acontecendo
devido ao fato da idade estar avançando. Não que eu seja velho, mas posso dizer
que lembro de coisas da cidade desconhecidas dos mais novos, como poder brincar
de bola, esconde-esconde, pega-pega ou mãe da rua em plena Rua Dr. Cardoso de
Almeida, onde eu morava, próximo da Igreja Nossa Senhora de Lourdes, sendo eu e
meus amigos raramente incomodados pelos carros. E é desse lugar que tenho
importantes e algumas outras curiosas lembranças, inclusive de figuras
pitorescas que por ali circulavam.
Uma
dessas pessoas que chamavam a atenção de todos e principalmente da criançada
era o Chico Lindo, mulato de uns 30 anos e sempre muito alinhado. Cabelos
pretos e um pouco mais compridos atrás, sempre com muito gel, pele bronzeada,
diria até mesmo que chegava a ser de cor marrom, olhos grandes e marcantes, estatura
mediana e uma barriga a entregar que estava acima do peso, ele tinha atraso
mental, era bastante educado, até mesmo doce no jeito de tratar a todos e
adorava conversar.
Sempre
bem vestido, com calça, camisa e sapatos sociais, Chico Lindo tinha uma paixão
maior do que bater papo: uma grande coleção de relógios! Ele ficava conversando
com a molecada e sua felicidade era ainda maior quando alguém lhe perguntava as
horas, pois assim podia exibir orgulhoso o relógio que trazia no pulso e ainda
abrir uma pasta da qual não desgrudava e onde havia muitos outros relógios para
conferir os números para os quais os ponteiros
apontavam.
E
quase todos os dias Chico Lindo passava pela Cardoso, conversava com a
criançada que brincava na rua, falava as horas e ia embora feliz. Do ponto de
vista psicológico, era uma criança que se realizava com pouco.
Sempre
que ia sair de casa, mesmo que para rapidamente atravessar a rua e entrar na
casa do amigo que morava em frente, olhava atentamente para ver se o Negão do
Pau estava por ali. E se estivesse, o negócio era correr para dentro e esperar.
Negão
do Pau era como todos chamavam um homem negro, careca, alto, forte, que andava
com um saco em uma mão e um pedaço de pau na outra, mas aparentemente
inofensivo.
Todos
diziam que ele descia o porrete em quem cruzasse seu caminho, mesmo sem motivo
algum. Pelo sim pelo não, eu achava melhor evitar qualquer proximidade.
Um
incidente provocado por ele marcou minha infância. A então namorada de um
grande amigo de meu irmão, que chegou a me dar aulas de português no colégio,
estava andando por perto de onde eu morava, quando ao virar uma esquina deu de
cara com o Negão do Pau. E não deu outra. Tomou uma paulada na cabeça que
abriu-lhe um corte e lá foi ela, levada ao hospital para ganhar um baita
remendo.
Certo
dia, minha mãe desabafou sobre esse caso com a dona Nenê, a mulher que lavava
as roupas lá em casa, falando também de sua preocupação com os filhos e ouviu como
resposta algo que deixou a todos surpresos:
-
Dona, o Negão do Pau se chama Inocente e é meu irmão. Não sabemos mais o que
fazer... – disse daquela pessoa tão calma e serena que era a dona Nenê.
Não
sei o que foi mais curioso e ao mesmo tempo surpreendente, se ele ser irmão
dessa tão boa senhora, ou ter o nome de Inocente!
O
Ahuya (escolhi essa grafia para dar um charme) foi uma das figuras mais cheia
de mistérios. Uns diziam que ele morava na rua, outros que residia em um hotel e
ainda havia relatos de ter família e casa na cidade.
Loiro,
de olhos claros, pele muito branca, barbado, Ahuya andava principalmente pela
Rua Amando de Barros dando gritos como “ahuyaaaaa”, “ahyyyyyyy” e coisas do
gênero. Também ficava horas olhando para o céu e apontando algo que só ele via.
Mas era engraçado quando transeuntes achavam realmente que algo estava sendo
avistado e ficavam ao seu lado, procurando algo que nunca encontravam.
Também
era comum o Ahuya parar no meio da rua, desabotoar a calça jeans sempre suja,
abrir o zíper e urinar olhando os motoristas passando.
Eis
que um belo dia esse personagem desapareceu. E então surgiram diversas versões
a respeito de seu sumiço, sendo a mais comentada, a de que teria ateado fogo ao
corpo e assim falecido, que pertencia a uma família muito rica e seu féretro
foi levado a São Paulo em um jatinho enviado pelo pai.
Quantas
lembranças! E ainda há outras. Mas vou ficando por aqui.
E
no próximo texto vou falar de outras figuras pitorescas... Até lá, quem quiser,
que conte outra.
·
Stéfano Garzezi Cassetari